Walt and El Grupo
Por Bruno Rodrigues
Em meados de 1941, os Estados Unidos ainda não tinham entrado na 2a Guerra, o que não significava, contudo, que o país pudesse ignorar o que estava acontecendo. As exportações americanas iam de mal a pior, já que a Europa estava em frangalhos. Resultado: a economia teve que se virar, e nem a indústria cinematográfica pôde ficar parada. Para evitar que as contas não caíssem no vermelho, Walt Disney passou a aceitar tudo quanto é tipo de proposta - e a mais estranha veio do próprio Governo dos EUA.
Preocupado com a possível influência do nazismo sobre os povos 'neutros' da América do Sul, os EUA tinham implantado a famosa 'Política de Boa Vizinhança'. Diversos artistas, em especial atores e diretores, eram despachados para 'south of the border', com o intuito de reforçar a importância da democracia e dos valores dos Aliados. Foi um fracasso: ou os sul-americanos ignoravam a passagem das celebridades ou as rejeitavam - isso quando não havia má vontade de quem vinha. Por isso, nos primeiros meses de 1941, Walt Disney foi chamado às pressas para uma conversa.
Aquela seria a mais ousada e cara e tentativa do Governo: Disney viajaria por vários países da América do Sul em missão diplomática e artística. Levaria uma equipe de artistas consigo, que voltaria com material para produzir um ou dois desenhos animados, sem a obrigação de fazer sucesso nos cinemas - apenas propaganda implícita. Fossem outros tempos, Disney sairia esbravejando da sala; mas eram tempos difíceis e, além da Guerra, seus estúdios estavam prestes a entrar em greve - fato que seria divisor de águas na história da empresa e da vida do próprio Disney, ele próprio admitiria anos depois.
Por isso, em agosto de 1941, Walt Disney e uma pequena equipe de artistas embarcou em uma viagem de três meses para a então distante e exótica América do Sul, em tour por quatro países: Brasil, Argentina, Peru e Chile, com uma rápida passagem pelo Uruguai.
A viagem, um sucesso estrondoso sob o ponto de vista de propaganda - a comitiva foi recebida e acompanhada por multidões por onde passava - e artisticamente transformadora - Mary Blair, uma das artistas da equipe, por exemplo, criou seu estilo marcante a partir daí - nunca tinha sido tratada com a devida importância nem pelos próprios estúdios Disney, por mais que houvesse material de sobra como registro. Foi então que entrou em cena Diane Disney Miller, filha de Walt que, através da The Walt Disney Foundation, decidiu bancar duas empreitadas: o documentário 'Walt & El Grupo', dirigido por Ted Thomas, e um livro ainda inédito, do historiador JB Kaufmann.
Vi 'Walt & El Grupo' ontem, e é uma obra-prima, e não apenas sob o ponto de vista de um fã da Disney. É, de longe, um dos filmes mais sensíveis que já assisti. A fotografia é luxuriante, a direção funciona quando é preciso, a edição (talvez o ponto mais alto do filme) é de cair o queixo, e até os efeitos especiais (fotos com profundidade e imagens antigas que de forma mágica se transformam em atuais) são brilhantes.
Quase 1/3 do filme é dedicado ao Brasil. Aliás, o filme parece ter sido feito para os brasileiros, tanto é a quantidade de entrevistados daqui (famosos ou não) e as músicas escolhidas (do 'Tabuleiro da Baiana' a 'Aquarela do Brasil' com Mart'nália, fantástica). Como moro no Rio, no bairro do Flamengo, foi uma experiência única 'esbarrar' com os cenários do filme e determinados pontos da minha vizinhança, como o Hotel Glória (onde 'El Grupo' ficou hospedado e surgiu a denominação da trupe), o Palácio do Catete (onde Disney se encontrou com Getúlio Vargas), o Pão de Açúcar (que tanto deslumbrou a equipe) e o Cassino da Urca, de certa maneira um ponto 'mítico' do filme, que aparece diversas vezes, seja em desenho, em filmes de 1941 ou mesmo hoje, em tristes escombros.
O Rio de Janeiro fascinou tanto os integrantes de 'El Grupo' que eles saíram daqui determinados a 'não gostar de Buenos Aires'. Ainda que as imagens da capital argentina sejam lindas (como são as de todas as cidades mostradas no filme), há um certo desprezo da trupe com a Argentina ('descobri a tão falada melancolia argentina, e lá repensei várias vezes o porquê de estar viva', chega a dizer, sarcástica, uma das artistas, em carta à família). O incômodo não pára por aí: é tratado com delicioso deboche a descoberta de que, ainda hoje, os portenhos, jovens ou velhos, acham que Walt Disney foi congelado após a morte (o que é desmentido nos créditos do filme com o mesmo tom irônico).
Em Santiago do Chile, Disney é recebido por mais uma multidão (comum a todos os países por onde passa), mas se surpreende com a recepção de dezenas de crianças que o homenageiam em um cinema. É, talvez, a foto mais significativa do filme: Walt em pé, de terno e gravata, cercado por um mar de criança sentadas, sorridentes e vestidas de uniforme branco. Inesquecível.
Se há um mote para o filme é a 'saída pela esquerda' para a greve dos estúdios (é claro), mas também há uma outra mensagem, quase silenciosa: a imensa saudade de maridos, esposas e filhos (então crianças) pelos pais que estavam tão longe (ainda mais para a época).
Diane Disney Miller pontua o filme, e mostra que herdou o carisma do pai. Seu olhar diz tudo. Em uma das cenas finais, ela pergunta 'se meus pais trouxeram presentes?' e mostra, feliz da vida, duas bonecas brasileiras.
Para os brasileiros, vale repetir, o filme é um presente, e fica claro que 'El Grupo' amou mesmo foi o Brasil. Os outros países foram passagem e aprendizagem - definitiva para alguns, como Mary Blair -, mas não marcou tanto a memória do grupo.
Para mim, foi bom reencontrar amigos na tela, como John Canemaker, JB Kauffman, Kevin Blair (filho de Mary) e Dider Ghez (ex-Disney que morou no Brasil).
A única escorregadela: no finalzinho, quando na tela passam imagens e textos sobre o que aconteceu com cada um do 'El Grupo' após a viagem, na legenda em português o brinquedo dos parques Disney 'it's a small world' (concebido visualmente pro Mary Blair) é chamado de 'para ser feliz' (uma confusão entre música e atração do parque). Mas, tudo bem.
Na platéia, muitos vips em área reservada: alguns entrevistados no filme, outros filhos e netos destes, todos visivelmente emocionados. Quando as luzes se acenderam, abriu-se um espaço para perguntas (soube-se que ainda não há planos de exibição em grande circuito nos EUA, nem programação para sair em DVD, mas duvido que a The Walt Disney Foundation não o faça). Ted estava feliz da vida e Kuniko - séria quando quieta e muito sorridente quando abordada - observava tudo, deslumbrada.
Como foi como 'disney experience'? Por conta das dezenas e dezenas de imagens de Walt Disney, filmes absurdamente bem recuperados, de que eu jamais tinha visto um fotograma sequer, nunca senti Walt tão perto, tão vivo, tão palpável. Estava ali a alegria, o espanto, a preocupação, o carisma de um Walt Disney relativamente jovem, aos 40 anos, muito antes da televisão e da Disneyland.